quinta-feira, 16 de junho de 2011

Marcha da liberdade

Wilson Correia

Há alguns anos a morbidez política brasileira incomoda, e muito. Não me refiro ao “politicamente correto”, essa postura de tolerância (às vezes até diante do intolerável) que também pode levar um corpo político ao próprio funeral.
A morbidez a que me refiro, primeiramente foi notada no “silêncio dos intelectuais”, mas se fez comodidade cotidiana, delineada pela refração dos movimentos sociais brasileiros, pela sonolência ideológica da sociedade organizada.
Daqui a alguns anos talvez os historiadores produzam uma explicação plausível para essa nossa quase indiferença político-ideológica, crescente e persistente desde as lutas pela redemocratização do Brasil, do “show” dos “carapintadas” e da tomada das rodovias e ruas pelo movimento dos sem-terra e dos sem-casa. Há muito, bandeiras e sujeitos sociais parecem recolhidos ao recôndito doméstico, à sombra do espaço privado.
Agora, contra essa prostração práxica, parece surgir uma fumacinha no fim do túnel. Será que um projeto de nação para o Brasil está começando, inusitadamente, pelos apreciadores da maconha? Oxalá isso não fique na especulação.
Surgido no vazio político, ideológico e cultural deixado por uma esquerda que chegou ao poder e que, aqui e ali, demonstrou-se avessa à autocrítica, a chamada “marcha da maconha”, após o visível embate com os “aparelhos repressivos e ideológicos do Estado” (salve Althusser!), transformou-se em “marcha da liberdade”.
No manifesto de seus idealizadores, leio:
“Prisões, tiros, bombas, estilhaços, assassinatos. Por todo o país, protestos legítimos estão sendo reprimidos com ataques violentos da força policial. Querem nos calar”. Mas... “Não somos uma organização. Não somos um partido. Não somos virtuais. Somos REAIS. Uma rede feita por gente de carne e osso. Organizados de forma horizontal, autônoma, livre. ... Temos poucas certezas. Muitos questionamentos. E uma crença: de que a Liberdade é uma obra em eterna construção. Acreditamos que a liberdade de expressão seja a base de todas as outras: de credo, de assembléia, de posições políticas, de orientação sexual, de ir e vir. De resistir. Nossa liberdade é contra a ordem enquanto a ordem for contra a liberdade”. ... “Ciclistas, lutem pelo fim do racismo. Negros, tragam uma bandeira de arco-íris. LGBTT, gritem pelas florestas. Ambientalistas, cantem. Artistas de rua, defendam o transporte público”.
É o imobilismo recebendo um “tapa da pantera” (salve Maria Alice Vergueiro!). Um debate posto em marcha. Uma brasinha relampejante. Um convite à ação.
Não foi sem motivos, então, que, ontem, a Suprema Corte brasileira decidiu dar ouvido aos “maconheiros”. Algo notável, sobretudo pelo fato de o relator do processo que pedia à justiça a repressão dessas marchas, ministro Celso de Mello, ter proclamado que "A polícia não tem o direito de intervir em manifestações pacíficas. Apenas vigiá-las para até mesmo garantir sua realização. Longe dos abusos que têm sido impetrados...".
Segundo o ministro, não há o que temer diante das novas ideias, "transformadoras, subversivas, mobilizadoras", as quais "podem ser tão majestosas e sólidas, quanto são as mais belas catedrais”, pois ideias “podem ser mais poderosas que a própria espada”, razão pela qual são “tão temidas pelos regimes de força".
Ao menos desta vez, o Supremo desceu à rua. Preteriu a força bruta para que a liberdade tenha o direito de ir e vir. Impressionante... Não deixa de ser respeito pelo povo. Porém, uma irmã gêmea da “marcha da liberdade” ainda dormita e precisa ser urgentemente acordada: é a “marcha da justiça”. Aliás, este não seria um bom momento de despertá-la para o colorido da vida, das pessoas, dos movimentos e das ruas?

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