terça-feira, 2 de agosto de 2011

Justiça sem fronteiras

Wilson Correia*

O apoio social mais afirmativo é a justiça.

A pressão de Obama surtiu efeito e o Brasil lançou o programa “Ciência Sem Fronteiras” dia 26 de julho de 2011. Serão 75 mil bolsas de estudo no exterior, a ser usufruídas mediante contato com a "flexibilização curricular". Tem sido assim: país que se rende à incompetência para instaurar a justiça social apela para as cotas.
O sistema de cotas tornou-se um mal necessário ao capitalismo. Enquanto vige esse sistema, temos de conviver com esse mal. Se o sistema fosse capaz de oferecer condições reais de vida digna para todas as pessoas, as cotas já estariam obsoletas.
No entanto, como o propósito é o de amenizar a tensão social causada pela luta de classes que campeia as sociedades liberais, as cotas estão na moda. Esse é o “x” da questão. Como o QI (quem indica) aí é o Estado, os critérios de eleição se tornam cruciais.
Alguns problemas com o programa causam inquietação. Por exemplo: por que priorizar as áreas tecnológicas, lastreadas nas ciências exatas? O Brasil precisa mais de engenheiros do que de seres humanos, homens e mulheres, melhor qualificados?
Outra: por que a segunda língua do programa é o inglês? Por que um programa que se quer inclusivo não dá ao estudante o direito de ele próprio indicar o seu segundo idioma? Ou a “flexibilização curricular” só vale para os idealizadores desse programa? São fartos os exemplos históricos dando conta de que onde as armas não subjugaram, foi a língua que o fez. Se a proficiência em língua inglesa permanecer como critério de inclusão nesse programa, o sistema já não estará selecionando os pré-selecionados, uma vez que só quem estuda nos melhores colégios brasileiros chegam ao domínio desse “segundo idioma”?
Mais: se o idioma está sendo visto como um empecilho, um verdadeiro muro entre os propósitos do programa e a eleição dos participantes nele, por que, por exemplo, o Brasil não bateu o pé exigindo que, nesse projeto, os mestres falem a língua dos alunos? Não seria mais fácil encontrar professores bilíngues invés de exigir isso dos estudantes? Claro: dominar um segundo idioma é decisivo a cidadãos e a nações que querem se firmar diante do mundo... mas, por que o programa não adota a política de acolher a língua do estudante, prevendo que ele faça cursos de aprofundamento nessa sua segunda língua ao longo da participação nos cursos no exterior?
Ainda, se a Educação Básica brasileira não prepara as pessoas para o ingresso no ensino superior público, serão as cotas e a flexibilização curricular que irão corrigir essa distorção? Ora, no capitalismo, as cotas, como tudo mais nessa sociedade de mercado e de competitividade, são apenas para alguns. Enquanto isso, os problemas estruturais desse modelo societário continuarão “como dantes no quartel de Abrantes”.
Por fim, uma última indagação: por que, em lugar de lançar um programa de “Ciência Sem Fronteiras”, o Brasil não investe em construir uma sociedade de “Justiça Sem Fronteiras”, a qual, por oferecer condições dignas de acesso aos bens materiais, culturais e sociais produzidos pelo conjunto da sociedade, viesse a aposentar o sistema de cotas?
Ora, qualquer programa educacional somente ganha concretude quando se lhe agregam os objetivos da terminalidade. O que estamos vendo nesse projeto, além de voltar a alinhar a educação aí prevista ao modo estadunidense de “educar”, é que ele não manifesta a preocupação com a formação humanística, essa que evidencia que o homem, tragado pela tecnologia, agora precisa ser redescoberto pela razão instrumental.
“Justiça social sem fronteiras” é aquilo de que mais necessitamos. Isso, porém, parece estar fora da ordem do dia. Soa loucura externalizar esse desejo. Mas, como disse T. S. Eliot, “Em uma terra de fugitivos, tomar a direção oposta parece estar fugindo”.
Ao querer uma sociedade justa estamos caminhando rumo à utopia? Que mal tem? Enquanto a utopia for necessária, que ela cumpra a sua função de nos ajudar a lutar por uma sociedade que não precise mais de nenhuma utopia.

* Adjunto em Filosofia da Educação no CFP da UFRB.

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